Viajar no Comboio Ibérico é como embarcar num cruzeiro. Apagaram-se as luzes da cabine e em vez do luar sobre o mar, vislumbravam-se no escuro árvores, postes, montes e casas a passarem velozes pela janela. Dentro do trem estava confortável e quente, a cama estava feita, a luz do abajur convidava as pessoas a ler antes de adormecer. A uma da manhã passaram entre as estações de Mangualde e Celorico da Beira. O comboio só voltou a parar na Guarda e em Vilar Formoso, onde a locomotiva da CP deu lugar a uma máquina da Renfe, que rebocou a composição para o outro lado da fronteira. Viajaram num Talgo Pendular, um trem de tecnologia espanhola na qual cada par de veículos assenta num par de rodas comum a ambos, diminuindo assim o peso e o atrito sobre os trilhos. Nas curvas, os vagões inclinam-se de forma automática e natural, conforme a velocidade seja maior ou menor, o que aumenta o conforto dos passageiros e permite que o comboio circule mais depressa.
O compartimento do vagão Gran Classe, de tons vermelho e rosa desmaiados, tinham dois lugares que foram transformados em camas e um banheiro privado com lavatório, WC e chuveiro. O espaço, naturalmente pequeno, era engenhosamente bem aproveitado. A bolsinha com os logotipos da CP e da Renfe estampados continham gel, sabonete, shampoo, escova de dentes, dentífrico, lâmina e creme de barbear, touca, lenços de papel, kit de costura e chinelos. Mas o quarto só servia para dormir porque a vida a bordo acontece no bar e no restaurante. Os passageiros tinham um cartão perfurado para abrir e fechar o seu quarto e o preço da viagem incluía o jantar e o café a bordo.
Alhandra, Alverca, Vila Franca de Xira, Azambuja. A periferia de Lisboa corria pela janela do compartimento, uma sessão de luzes amareladas, prédios, fábricas, armazéns. Mariano abriu a porta da cabine para o corredor, e avistou o Tejo com suas águas calmas.
O jantar a base de salmão defumado foi consumido vagarosamente. Nas viagens de comboio é uma arte fazer o jantar durar. Este durou entre as 22 horas e 30 minutos e a meia-noite e 15 minutos.
O restaurante tinha tons azulados que contrastavam com o preto e branco das toalhas de mesa. Luzes indiretas e um design sóbrio davam-lhe uma atmosfera acolhedora. Sem paisagem, porque lá fora a escuridão era total, tudo convidava a que os viajantes voltassem sua atenção para o interior. Nesse microcosmo as pessoas cumprimentavam-se, cúmplices, como se houvesse algo de especial por estarem ali no meio da noite jantando a velocidade de 140 Km/hora.
―Prefiro demorar uma noite para chegar a Madrid em vez dos 50 minutos do avião. "É confortável para descansar e dormir, é tranquilo, sai e chega à hora marcada e não tem overbooking", ― explicou Beatriz a Mariano, ―acrescentando que era a segunda vez que viajava nesse comboio.
Na mesa ao lado jantavam uma angolana residente em Cuba, duas cubanas e um cubano.
À meia-noite o vagão-bar, ao lado do vagão-restaurante, tinha um ambiente muito diferente. Bastava atravessar o estreito corredor que os separava e a atmosfera intimista de uma dava lugar a um espaço amplamente iluminado, onde um grupo de espanhóis ocupava todo o balcão. Pelas gargalhadas e tilintar de copos e garrafas, parecia que estavam num bar madrileno. Eram jovens estudantes e faziam parte de um grupo de 30 que embarcou em Coimbra. Ana Alvarez e Ivan Rodriguez estudavam Direito. Quando chegassem a Madrid, cada um apanharia um avião. Ela iria para Santander e ele para Cartagena.
O Lusitânia e o Sud procuravam responder a vários segmentos de mercado. O preço do Lisboa-Madrid ia desde os 60,50 euros na classe turista até aos 203,50 euros na Gran Classe Single. Pelo meio havia ainda as classes de Cama Turista e de Cama Preferente, e combinações possíveis de grupos de três ou quatro pessoas num compartimento, bem como preços diferentes para crianças, idosos e em bilhetes de ida e volta.
Vilar Formoso, Salamanca, Medina del Campo, Ávila. Dormiam embalados pelo andar do comboio, mas acordavam nas estações, sobretudo quando as paradas se eternizavam. Às seis da manhã (sete na hora espanhola) o diligente funcionário da Servirail acordou, através do telefone interno, os passageiros dos vagões-cama.
Lá fora era noite escura, mas a julgar pela quantidade de túneis, pontes, e aterros, notava-se que o Lusitânia atravessava agora a serra de Guadarrama.
O café com leite quentinho, as torradas, o croissant... A manhã, invernosa, estava adensada por uma neblina e uma umidade cortante, mas à qual o comboio-hotel parecia blindado. A estação de Chamartín apareceu sem aviso prévio. Eram 8 horas e 20 minutos quando o Talgo se imobilizou. Pontualidade britânica no coração da Península Ibérica.
(Danilo Soares Marques)
Danilo Soares Marques - Perfil do Autor:
Contatos
dmsoaresmarques@hotmail.com
soareslaranja@yahoo.com.br